quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Crime, preconceito e perseguição





A abstinência sexual e até mesmo a solidão ocasionadas pelo enclausuramento contribuem para a ocorrência de relações homossexuais nas unidades prisionais. O preconceito e a vergonha dos apenados em assumir a prática sexual entre homens ou entre mulheres, dificultam o trabalho de conscientização acerca dos riscos das relações desprotegidas. "Há sim casos desta natureza dentro dos presídios. Somente quando os presos passam a confiar na equipe médica, é que começam a relatar tais ocorrências. Muitos pedem até preservativos", afirma Nayran Andrade.
Júnior SantosA espanhola Lourdes e a polonesa Malgazarta, que cumprem pena no Presídio Feminino de Natal, reclamam das companheiras de celaA espanhola Lourdes e a polonesa Malgazarta, que cumprem pena no Presídio Feminino de Natal, reclamam das companheiras de cela

Questionada sobre como ocorreram as infecções nos detentos cujos exames deram positivos, Nayran esclarece que a maioria deles foi infectada fora dos presídios. "As mulheres, por exemplo, geralmente trazem a doença de fora e passam a desenvolvê-la dentro do presídio. A maioria entra na criminalidade por causa dos parceiros e maridos", afirma. No Presídio Feminino de Natal, na zona Norte, há pelo menos três mulheres nesta condição. A polonesa Malgarzata Katarlina, 40 anos, é uma delas.

Malgarzata está presa em Natal há quase três anos. Ela aguarda julgamento por tráfico internacional de drogas. Ela e mais dois rapazes foram detidos pela Polícia Federal em Natal, quando o voo que saiu de São Paulo com destino a Varsóvia, na Polônia, aterrissou em Natal. Soropositiva há 12 anos, Malgarzata relata, misturando inglês, espanhol e português, que foi infectada pelo namorado, mas não detalhou como.
Desempregada na Polônia, ela aceitou o pagamento de um traficante local para servir como "mula" e transportar a droga do Brasil para o país europeu. No momento da prisão ela relata que os agentes da Polícia Federal verificaram uma certa quantidade de medicamentos e a questionaram o motivo pelo qual ela carregava aquilo. "Eu disse que era por causa da aids". Em Natal, ela é tratada pelo Dr. Antônio Araújo, considerado um dos infectologistas mais experientes no tratamento da doença.

Questionada sobre o tratamento, ela afirma que a medicação brasileira ainda causa tontura e mal-estar. "Aqui eu preciso tomar muitos medicamentos por dia. São cinco. Na Polônia era só um por dia". Durante todo o tempo de prisão, a polonesa jamais recebeu ajuda da família. Ela afirma que a Embaixada no Brasil só foi ao presídio uma vez. Com os olhos marejados, ela diz que seu maior sonho é ser deportada e ficar presa no seu país. A ajuda que recebe vem de um dos amigos presos que hoje cumpre pena no presídio semiaberto.

Todo o diálogo com Malgarzata foi intermediado por uma de suas colegas de cela. A espanhola Lourdes Cañadas cumpre pena de 19 anos também por tráfico internacional de drogas. Ela relata que o preconceito exclui Malgarzata das demais detentas. "As outras meninas são muito preconceituosas com ela. Até no uso do banheiro, elas reclamam. Quando a Malgarzata menstrua, parece que o mundo vai acabar. Não deve ser assim. Malgarzata é um ser humano", defende Lourdes. Ela diz, ainda, que nos últimos dias Malgarzata está mais triste pois soube que o namorado foi internado num hospital polonês com um grave quadro de infecção. Abraçada à amiga que não segurou as lágrimas, Lourdes ampara Malgarzata no retorno à cela.

Preconceito ainda é o maior obstáculo

O primeiro dia do ano de 1998 trouxe consigo as esperanças e o misticismo intrínseco a todo novo começo para o jovem Frederico (nome fictício), com 20 anos de idade à época. Às 9h35min do dia 2 de janeiro, porém, todos os sonhos e perspectivas foram ceifados, num primeiro instante, com apenas uma palavra escrita em letras garrafais: REAGENTE. O teste para o HIV tinha dado positivo. Frederico já escondia da sua família sua condição homossexual. A partir daquele dia, acrescentou mais peso ao seu fardo, o estigma de "gay promíscuo infectado pelo HIV".

"Sofri demais pela ingenuidade e confiança. Nós transávamos sem camisinha e eu jamais esperava que isso fosse acontecer. Antes dele, eu nunca tinha me envolvido amorosamente e sempre me cuidava", relata. A transmissão do vírus ocorreu ainda no início da vida sexual de Frederico, quando se relacionou amorosamente pela primeira vez com um homem.

"Os amigos dele falavam que ele era promíscuo e eu não acreditava pois estava apaixonado", acrescenta. Ao voltar pra casa, o homem hoje com 33 anos, disse que a primeira coisa que fez foi conversar com o então parceiro. "O chão se abriu quando eu contei pra ele e fui ignorado. Até hoje me questiono por que ele fez aquilo comigo", reflete.

Foi preciso tempo para Frederico se restabelecer e entender que era possível controlar o HIV e ter uma vida normal, dentro das suas possibilidades como soropositivo. "O pior momento é aceitar a nova realidade, o problema, as alterações pelas quais sabe-se que irá passar", afirma. O preconceito, segundo ele, é um dos piores momentos na fase de adaptação à nova vida e à autoafirmação como portador do vírus. "Pela nossa cabeça passa a sensação de que ninguém irá te aceitar. A vontade era de morrer imediatamente", confessa.

Hoje, porém, vencidas as etapas mais complicadas e ainda mantendo a doença como um segredo até para a própria família, Frederico começa a enxergar um novo horizonte. Quer estudar, fazer faculdade e voltar ao trabalho. "Hoje meu foco é estudar. Deixei de pensar em amores, em vida sexual. Isto ainda é uma grande barreira para os soropositivos". Questionado se se considera uma pessoa feliz, ele diz, com os olhos marejados: "Sou uma pessoa em busca da felicidade. Ainda é preciso vencer a barreira do preconceito".

Para a infectologista Tereza Dantas, a maioria das críticas, preconceito e discriminação sofridas pelos portados de HIV/aids são feitas por pessoas cuja sorologia é desconhecida. "Muitas vezes elas apontam e incriminam uma pessoa sabidamente soropositiva sem conhecer sua sorologia. É o que costumamos chamar de sorologia interrogativa. Então, por que julgar alguém? Independente de ser em relação ao HIV ou qualquer outro tipo doença, não cabe a nós julgar", ressalta.

A infectologista defende que quem ainda não fez o exame, que o faça. "É possível sim viver com aids hoje, com o vírus HIV. É muito mais difícil viver com o preconceito, seja o dos outros ou o auto-preconceito", destaca. Tereza Dantas comenta, ainda, que existem pacientes que sofrem o auto-preconceito. Muitas vezes se enxergam de forma inferior e não se aceitam como soropositivos.

Muitos portadores do vírus acham que não têm direito a uma nova relação, que só podem namorar quem tem HIV. Segundo Tereza Dantas isto não é verdade. É preciso, porém, redobrar os cuidados e não deixar de usar preservativos. Sobre o preconceito, ela faz um alerta. "Para as pessoas que não estão habituadas a viver ou conviver com quem tem HIV ou aids, que procurem enxergá-las de forma menos preconceituosa. A infecção está muito disseminada em nosso meio e se você não tem (o vírus), provavelmente, alguém muito próximo a você pode ter".

Há subnotificação de casos nas penitenciárias do RN

O Rio Grande do Norte tem uma população carcerária de aproximadamente 6 mil homens e mulheres. Deste total, foram detectados 15 casos de contaminação por HIV nas unidades prisionais de todo o Estado em 2009, ano no qual foi realizado o último mutirão de exames nos apenados. O número, porém, é subnotificado. "Eu acredito que a quantidade de infectados seja bem maior. Faltam equipes multidisciplinares para uma busca ativa nos presídios estaduais", destaca Nayran Andrade, vice-diretora da Unidade Psiquiátrica de Custódia e Tratamento e responsável pelo levantamento do índice de infectados por HIV nos presídios estaduais.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, os detentos estão expostos às doenças infecciosas como tuberculose e pneumonia que são, também, doenças oportunistas que acometem soropositivos. De acordo com Nayran Andrade, a Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania está trabalhando na elaboração e implementação de um plano de atendimento à saúde básica dentro dos presídios. O projeto, porém, ainda está em fase de discussão entre secretarias e profissionais da área médica e ainda não dispõe de data fixada para ser lançado.

Segundo Nayran Andrade, a identificação de um possível portador do vírus HIV dentro dos presídios ocorre quando a aids dá os primeiros sinais de manifestação. "A gente percebe no dia-a-dia quando o detento vai perdendo peso, adoece. A partir daí, a gente solicita o exame", relata. De acordo com o último levantamento feito pela Unidade de Custódia, o Presídio Estadual de Parnamirim (PEP) é o que apresenta o maior número de soropositivos, com três casos diagnosticados. "Suspeita-se, entretanto, que o maior número de homens com HIV/aids esteja no Presídio de Alcaçuz, por ser o maior e por ter um alto índice de incidência de tuberculose, que não deixa de ser suspeito", afirma Nayran Andrade.

Os números reais, porém, só deverão ser conhecidos quando a Corregedoria de Justiça em parceria com a Sejuc, Sesap e Laboratório Central realizarem o mutirão de exames clínicos previstos para dezembro. Serão oferecidos testes e diagnósticos para HIV, sífilis, hepatite, tuberculose, hemograma simples e completo, diabetes e doenças sexualmente transmissíveis. O cronograma de datas e locais de exames ainda serão divulgados pela Sejuc.

Nayran Andrade afirma que a atual situação dos presídios é complicada. "É um risco muito grande. É um caso de saúde pública. O ambiente prisional é propício à proliferação de doenças infectocontagiosas. Elas são, inclusive, conhecidas como doenças prisionais", ressalta. No Hospital de Custódia, um dos presos portadores do vírus recebe acompanhamento médico no Hospital Giselda Trigueiro. Todos as vezes em que precisa ir ao complexo hospitalar, é escoltado por agentes penitenciários. No Presídio Feminino, em Natal, três mulheres também fazem acompanhamento por serem portadoras do HIV.

Primeira morte no RN ocorreu em 1983

O primeiro diagnóstico de aids no Rio Grande do Norte ocorreu em abril de 1983. O paciente J. A. L., com 34 anos à época, deu entrada no Hospital Giselda Trigueiro com tuberculose ganglionar. O médico designado para prestar assistência ao homem foi o infectologista Antônio Araújo. "Naquela época nós não sabíamos o que causava a doença, como se pegava e como se tratava", relata o médico. Com o tratamento da tuberculose, o paciente apresentou melhoras. Pouco tempo depois, porém, retornou ao hospital apresentando pneumonia e uma doença jamais vista à época, o Sarcoma de Kaposi, que é um tipo de câncer causado pela aids.


"A pneumonia levou o paciente à morte. Na autopsia, verificamos que ele estava com tuberculose também. Ambas são doenças oportunistas causadas pelo vírus. Mas não tínhamos o conhecimento necessário naquela época para chegarmos ao laudo em tão pouco tempo", descreve Antônio Araújo. Ele disse que somente após estudos sintomáticos e o cruzamento de informações com casos de mortes similares no país e no mundo, constatou-se que o homem foi vitimado pela aids.

"É uma doença dinâmica e cientificamente bem estudada. Hoje, a aids é uma doença crônica com muitos efeitos colaterais causados pelas medicações", comenta o infectologista. Atualmente, Antônio Araújo atende pacientes que se tratam há 25 anos com a medicação disponibilizada pelo Governo Federal, conhecida como coquetel anti-HIV. Diante da quantidade de atendimentos realizados diariamente pela equipe médica comandada pelo infectologista, ele faz um alerta. "As pessoas deixaram de ter medo da aids. Não usam mais camisinha, não se previnem. Isto é muito complicado. É preciso sim usar preservativo, sempre".
FONTE:Tribuna do Norte.

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